Nova morada

Em busca de dignidade

Venezuelanos, como Rancess Gonzalez, sonham em recomeçar a vida em solo pelotense

Paulo Rossi -

Refeições racionadas, medidas em pequenas porções. Queixas de fome. Dores na barriga. De fome. Efeitos da pior crise da história da Venezuela. E foi pra fazer desaparecer as costelas do primogênito - expostas por essa mesma fome - que a família começou a se desfazer do patrimônio. Soterrados pelo desemprego e pela hiperinflação - que pode atingir 1.000.000% no fim deste ano - não havia outro jeito de garantir a sobrevivência dos filhos. Era preciso agir. Era necessário partir. Antes que ficassem diante de pratos totalmente vazios e sem qualquer condição de chegar à fronteira para recomeçar a vida.

Foi assim que o casal Rancess Gonzalez, 39, e Karyani Serra, 32, e os três filhos acabaram desembarcando no sul do Sul do Brasil. Na bagagem, apenas documentos, poucas roupas e um tanto de esperança em dias melhores. “Não queremos mais voltar ao nosso país. É muito triste, mas com fome ninguém dorme”, resume Gonzalez. Em Pelotas há quatro meses, a família conta com o suporte dos companheiros de religião. Aliás, foi em função dessa acolhida das Testemunhas de Jeová que ficou definido que viriam para a Zona Sul do Rio Grande do Sul.

E não são os únicos. Cerca de 35 venezuelanos estão em Pelotas; todos amparados pela congregação religiosa. O desafio, agora, é obterem oportunidades de trabalho para reconquistarem a autonomia financeira. É uma das principais demandas, já apresentadas também ao Grupo de Pesquisa em Políticas Migratórias e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas (Gemigra-UCPel).

“Aceito qualquer coisa que as minhas mãos possam fazer”
A cena é emblemática. A lembrança volta-se a Barcelona, capital do estado de Anzoátegui, na Venezuela. Ao circular pela cidade, não há uma rua em que todas as casas estejam ocupadas - destacam. O colapso na economia - acentuado nos últimos anos com a queda na produção de petróleo - espalha refugiados por diferentes países da América do Sul: Colômbia, Equador, Peru, Chile, Argentina, Brasil... E chega também a nações como o México, na América do Norte.

Foi tudo muito rápido e com poder destruidor. Empresas de portas cerradas. Desemprego. Desabastecimento. Violência. Decadência na prestação de serviços públicos. E, nesse contexto, Rancess Gonzalez viu diluir-se os 20 anos de carreira em montadoras e concessionárias - como a Mitsubishi e a Hyundai -,em que entrou como operário e chegou a atuar como analista de sistemas. A renda era o suficiente para um dia a dia confortável: quatro salários mínimos nos meses em que não contava com hora extra.

De repente, sem emprego e sem qualquer perspectiva, a crise econômica instalou-se diretamente dentro de casa. Para evitar que a alimentação se restringisse a mandioca, abóbora, sardinha, coco e manga - em abundância em pátios e ruas -, como ocorre com grande parte das famílias, Gonzalez colocou o carro à venda. Mais uma angústia. Sem dinheiro circulando, não havia quem pudesse adquirir o veículo.

“É importante que as pessoas entendam por que estamos aqui. Não é por moda que os venezuelanos estão indo embora do país. É por necessidade”, reforça. Em Pelotas, com toda a documentação regularizada - Carteira de Trabalho, CPF e Cartão SUS - e os filhos Elias, de 11 anos, e Matias, de oito anos, matriculados na escola, o sonho é conquistar emprego fixo. “Aceito qualquer coisa que as minhas mãos possam fazer”, garante. Nestes quatro meses, já atuou em limpeza de pisos e esgotos, na abertura de buracos e na construção civil.

E quando questionado sobre como encaram a crise que também afeta o Brasil, vai direto ao ponto: “O que para vocês aqui é crise, para nós é um mar de felicidade”. Foi no Brasil, em Pelotas, que o caçula Liam, de dois anos de idade, teve a chance de experimentar novos sabores. E de alimentos básicos: maçã e leite (além do materno). “Sabemos que aqui o pessoal reclama que o litro da gasolina custa mais de R$ 5,00, mas para quem tem fome, gasolina não serve de nada”. Não tem valor para quem está à míngua.

Saiba mais
* Papel do Gemigra - Integrantes do Grupo de Pesquisa em Políticas Migratórias e Direitos Humanos da UCPel reuniu-se na última quinta-feira com parte dos venezuelanos. A fase é de levantamento de demandas das famílias. Oportunidades de trabalho e acesso a cursos técnicos, principalmente, aos jovens despontam entre as principais necessidades dos refugiados. A equipe do Gemigra também irá envolver-se na elaboração de cartilha com orientações sobre o acesso a serviços públicos no Brasil. 

A professora Anelize Corrêa destaca a importância de a comunidade acolhê-los. E mais: “Não discriminá-los”. Quem quiser solidarizar-se com as reivindicações dos hermanos, pode fazer contato com as famílias através do Gemigra. Os encontros ocorrem às terças-feiras, das 14h às 17h, junto à Assistência Judiciária da UCPel. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (53) 2128-8071.

* Interiorização dos imigrantes - Até agora, em torno de 1,5 mil venezuelanos participaram do processo de interiorização organizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social em parceria com as Agências da ONU para Refugiados e para as Migrações, com o Fundo de População das Nações Unidas e com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. A expectativa é de que novas etapas ocorram todas as semanas, ao longo deste mês. Os refugiados, que entraram no Brasil pelo município de Boa Vista, capital de Roraima, têm sido conduzidos a vários estados: Amazonas, Paraíba, Pernambuco, Mato Grosso, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, além do Distrito Federal.

*A crise em números - Parece inacreditável: a hiperinflação na Venezuela deve alcançar 1.000.000% (um milhão por cento) no fim deste ano. É a estimativa do Fundo Monetário Internacional. É uma situação que se assemelha à da Alemanha em 1923 e à do Zimbábue (na África), no final da década passada. No Brasil, o pico da hiperinflação foi em 1993, quando fechou o ano em 2.477%.

O FMI também calcula que a economia venezuelana irá encolher 18% em 2018. O último ano de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do país foi em 2013, com 1,3%. O Fundo também projeta que a retomada não ocorrerá antes de 2023.

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